Resenha de A protetora

A trama de A Protetora conta a história de Eva Maria da Silva .
 Enfermeira recém-formada, ela é contratada verbalmente pela prefeitura para atuar num centro comunitário na zona rural de um município do nordeste.
A sindrome de Noé 
 
 
Eu não sou psicóloga e por isso fui procurar fontes que falassem dessa síndrome que para mim, era até então desconhecida. 
  A síndrome  de Noé traduz-se na "acumulação de uma quantidade exagerada de animais domésticos, nas suas habitações, onde as condições mínimas de higiene e segurança não são garantidas. Geralmente as pessoas afetadas por esta condição revelam incapacidade para demonstrar sentimentos e poucas faculdades nos relacionamentos interpessoais. Além disso elas não percebem que os animais sofrem, que não estão sendo bem cuidados e  não acham que precisam se ajuda". 
A enfermeira se decepciona logo em seu primeiro dia na nova função, porque o sonho idealizado na faculdade revela-se totalmente diferente da realidade.
Ela não faz amigos e se isola na casa que alugarara para morar nessa nova cidade, utilizando de  vários subterfúgios psicológicos para justificar sua conduta retraída.
 
 
" Pessoas emocionalmente fortes não devem implorar por atenção nem por amigos . Mas eu não me sentia forte. Ao contráro, sentia-me fraca e com baixa autoestima,porém era teimosa e orgulhosa. " Não sou teimosa como uma mula, sou teimosa como um gato'(...) porque gatos são animais bem teimosos por só fazerem aquilo que lhes dá na telha".
 
Observe que ela se compara a um gato e não a um ser humano. Recolher gatos é uma forma de estar ´próxima  a seres com os quais se identifica, reforçando esse sentimento crônico de  solidão.
 
 
 
 O Prólogo é  bem diferente neste livro. Como é comum a outros livros no gênero Dramático,  no prólogo  sempre  traz  uma cena em flasback da protagonista  ou ainda  uma cena que faça parte da trama.
 Em A Protetora , entretanto,  isto não acontece . Ele  serve como uma apresentação das razões da personagem  fazendo  reflexões sobre o que é ser um cuidador.
Interessante  observar que  a autora faz uma observação que em muito se assemelha ao dito pela personagem Eva no decorrer da obra :
 
" Apenas sei que quando estiver em minha última hora, não quero me arrepender de algo que eu poderia ter feito e não fiz, quer seja por medo, covardia ou comodismo. Sei que DEUS não me dará um fardo mais pesado do que eu possa suportar".
 
Eva é uma personagem bastante religiosa . E a frase de que  "Deus não me dará um fardo que eu não possa suportar" colocada no prólogo   serve como  gatilho em algumas pessoas para despertar o sentimento de "salvadores". 
Além disso,  o provérbio diz  para não murmurar, pedindo ajuda  para a"missão de cuidadores", o que neste caso em especial seria  recusar o  acolhimento compulsivo dos animais . 
 Era como se  questionar o fardo de "cuidador"  fosse uma forma de  questionar a propria justiça divina, incapaz de exigir de algúem mais do que ele poderia suportar.
Assim, cada animal que Eva vê na rua ela interpreta como parte de sua missão .
Eva tem dois irmãos mais novos, Marcos e Helena, sendo que Helena é três anos mais nova que Eva e é formada em psicologia e é ela que mais tarde levantará a hipótese de que Eva é uma acumuladora de animais e aquilo que faz  tem o diagnóstico de sindrome de Noé.
Após os três primeiros meses  em que está na nova cidade e no novo emprego , Eva se depara com Sam, a primeria gatinha regatada.  
É engraçado ela dizer que na internet existe uma recomendação para que "gatos pretos tenham nome começado com S" e  é assim que surgiu o nome Sam, dimunutivo de Samantha.
 
Quando uma escola solicita uma palestra de prevenção de AIDS, Eva e outras duas enfermeiras vão fazer oficinas na escola. É lá que ela conhece Manoel , professor de geografia .Era o dia 7/12 e exatamente as 19 e 12 minutos . E Eva gostava muito dos números 7 e 12 e de coincidências. Ela interpreta isso como um presságio.
É Manoel quem solicita amizade para Eva no facebook e diz que está passando férias em Minas gerais, assim só em fevereiro eles poderiam se ver pessoalmente. E Eva se vê numa enrascada, porque  seu emprego é temporário e ela pode ter que deixá-lo a qualquer momento. Além disso, como contar a ele dos 30 gatos ! Sim, porque a esta altura, Eva já tinha 30 gatos!
 
"Mas eu me sentia anestesiada.não tinha reação, sentia um dever moral de cuidar deles,(...) fiz a unica coisa que deveria ser feita, cumpri minha missão"
 E com essa justificativa para si mesmo, Eva regatou mais quatro filhotes abandonados...
 
A autora demonstra como foi difícil para Eva- e para os portadores reais desta síndrome rara-, se conscientizar de que precisa de ajuda. A personagem é complexa: obsessivo-compulsiva, romântica, carinhosa, distante emocionalmente- um verdadeiro paradoxo! É uma delícia tentar compreender essa personagem, e a autora Sandra Alves foi muito feliz na construção da mesma, porque era como se tornasse real para nós. A narrativa em tom confessional provoca  um a tomada de partido do leitor, ora ficamos do lado dela e outras vezes até questionamos se nós mesmos podemos ser como Eva, especialmente em pessoas como eu, apaixonadas por animais ...O que provoca essa imersão na trama.
 
 A Protetora , embora seja obra de ficção-, serve de alerta para a importância de cuidar da saúde mental, inclusive dos cuidadores , como médicos e enfermeiros.
 Baseado em fatos reais recolhidos em anos de trabalho da autora como enfermeira,
  A Protetora traz uma mensagem especial para médicos e enfermeiros: eles  não estão isentos de também necessitarem de ajuda ,como todo mundo!
 
Michelle Louise Paranhos - Escritora e critica literária .
 
Resenha originalmente publicada no Blog Entrelinhas Arte, Opinião & Poesia