Resenha de A peculiar tristeza guardada num Bolo de Limão de Aimee Bender

Hoje vamos falar de livros que inspiram a nós escritores...um livro diferente.Vamos lá?

      “Quando mamãe levantou, depois das seis, ela entrou na cozinha, viu o pedaço faltando no bolo e me encontrou caída aos pés da poltrona de listras alaranjadas. Ela se ajoelhou e, com carinho, afastou uma mecha de cabelo que caía sobre a minha testa. − Rose − disse ela. (...)− Como é que ficou? − Bom − eu disse, mas minha voz era hesitante. Ela foi até a cozinha, pegou um pedaço e se sentou ao meu lado, no chão, cruzando as pernas. Seu rosto estava todo marcado pela soneca. − Hummm − disse ela, comendo um pedacinho. − Você acha que está doce demais? Eu podia sentir a montanha crescendo em minha garganta, uma dor se espalhando por todo o meu pescoço. − O que está havendo, meu amor? − ela perguntou. − Não sei. − Joe já voltou da escola? − Ainda não. − O que há de errado? Você está chorando? Aconteceu alguma coisa na escola? − Você e o papai brigaram? − Na verdade, não − disse ela, limpando a boca com o guardanapo. − Foi só uma discussão. Você não precisa se preocupar com isso. − Você está bem? − perguntei. − Eu? − Está? − perguntei, sentando melhor. Ela deu de ombros. − Claro − disse. − Eu só precisava de um cochilo. Por quê? Fiz que não com a cabeça. − Eu achei... Ela arregalou os olhos, me encorajando. − ...Tem sabor de vazio − eu disse. − O bolo? − perguntou ela, rindo um pouco, surpresa. − Está tão ruim assim? Será que eu esqueci algum ingrediente? − Não − eu disse. − Não está ruim. É como se você estivesse distante. Você está se sentindo bem? Eu continuava balançando a cabeça. As palavras, palavras estúpidas, não faziam sentido. − Eu estou aqui − disse ela, alegremente. − E estou bem”.

 Esse livro é daqueles que precisam ser saboreados sem pressa... Literalmente falando.

Rose Edelstein inicia a narrativa de suas desventuras a partir dos preparativos para a comemoração de seu aniversário de nove anos.

Sua mãe se propõe a preparar um bolo de limão com calda de chocolate.

 Rose tem pressa e a mãe prepara o bolo aos poucos usando os ingredientes necessários- não um bolo de caixa semi-pronto!

 Quando o bolo está finalizado e antes mesmo de preparar a calda de chocolate pretendida, a mãe de Rose reclama de enxaqueca e vai tirar uma soneca matutina.

Rose  resolve então, ela mesma, preparar a calda do bolo: afinal o bolo deve ser coberto com a calda quando ainda está quente- racionaliza, justificando assim sua ansiedade- e logo a menina lambuza a fatia com a calda e  se delicia com o sabor do seu bolo de aniversário.

Um dos encantos dessa trama complexa é a habilidade da autora em descrever sensações que até então pareciam indescritíveis: O cheiro de bolos quentes, o sabor de tristezas.

Rose, a narradora- personagem seria ela o alter ego da autora? Não saberia dizer.

 Entretanto, é Rose quem desmaia no dia de seu nono aniversário ao comer a fatia do bolo e perceber o Vazio escondido nele.

 O mesmo vazio que ela interpreta como sentimento  experimentado por sua mãe enquanto preparava o bolo - embora na ocasião a menina não tenha ainda capacidade emocional de aperceber-se disso.

Aos poucos, porém, é a Jovem Rose que descobrimos ser a narradora e é o olhar de uma jovem de 22 anos que interpreta sua meninice e posteriormente sua adolescência.

Rose compreende que ela é capaz de entender os sentimentos de quem preparou o alimento e quanto mais ela entra em contato com alimentos diversos, mais ela se torna capaz de estabelecer, através do paladar, quem são as pessoas com as quais convive.

Então, de alguma forma, durante seu amadurecimento, a capacidade sensorial de Rose parece crescer junto com ela, e ela percebe os sentimentos de quem plantou o trigo cuja farinha gerou o pão...

Conforme amadurece, Rose aumenta sua capacidade de abarcar o mundo inteiro em sensações através da cadeia produtora de cada alimento.

Quando vai buscar um trabalho para si é na cozinha que ela se encontra.

 Temerosa porém, ela evita provar qualquer alimento preparado por ela mesma.

Rose sente-se isolada num mundo que não a enxerga em sua peculiaridade e como ninguém pode saber de tal estranheza, ela está irremediavelmente sozinha.

Mas... Rose não está sozinha em seu jeito estranho de ser.Será que ela mesma é capaz de olhar à sua volta e perceber a existência de Outros igualmente peculiares como ela, para além de seu prórpio estranhamento?

É quando ela descobre que existem outras pessoas com outras (in) capacidades e, por causa delas, experimentam o mesmo isolamento que a acompanhou por toda a vida.

E é na acolhida de seu irmão estranho e sua capacidade de tornar-se invisível que Rose finalmente consegue alcançar a redenção.

Aimee Bender traz para o leitor uma trama que aborda a complexidade do amadurecimento, a descoberta de emoções e a capacidade em perceber o mundo a sua volta e sair do seu egocentrismo infantil para observar as necessidades do Outro.

O inicio da trama é a Rose de nove anos que pela primeira vez tem a consciência de que existe esse Outro a ser desvendado.

 Ela olha para sua mãe que entrega a si mesma, todo o tempo. Para não olhar para dentro de si, a mãe olha para o exterior através da execução de projetos, no perdão ao seu marido:

porque, gravada na sua postura ereta e séria, estava a palavra “provedor”

A mãe de Rose não tinha alternativa a não ser sorrir, perdoar e ocupar-se: fazendo bolo de limão, cultivando morangos, fazendo algo por sua família... Qualquer coisa que não revelasse o Vazio em sua alma.

 Na palavra Vazio Rose descreve sua mãe e transfere para ela aquilo que traz em si mesma: Rose está Vazia.

Porém, a chave desse livro inesquecível está justamente nos parágrafos de abertura.

 A autora não traz um livro escrito em Flashback apenas, ela constrói um universo em que o tempo emocional é inversamente proporcional ao cronológico.

Quanto mais adensamos na narrativa mais nos afastamos do final.

 A Rose-menina sabe de tudo... É a jovem Rose que recorre à sabedoria que possuía ainda na infância para compreender o mundo do jovem adulto. Por isso ela revisita o passado.

Rose desmaia ao provar a fatia de bolo com a calda que ela mesma prepara... E é nesse momento que ela sente gosto de vazio.

O vazio de Rose é preenchido com as emoções que ela experimenta pelas mãos de outras pessoas, nos alimentos ofertados a ela.

Falta a Rose-menina a capacidade de compreensão só conquistada ao final do livro.

 Rose-menina sabe; Rose- adulta compreende. A sabedoria sem compreensão de nada vale. A compreensão sem sabedoria tão pouco importa.

Reparem que na capa desta edição temos a ilustração da personagem num momento crucial do livro além de gerar margem para indagações: Rose está ofertando o pedaço de bolo à alguém ou vai retirar para si  a fatia? 

Além disso, as roupas possuem aspecto infantil, mas a jovem retratada é adulta e é ela quem segura a fatia.A dualidade está na capa que retrata fielmente esse aspecto de duplicidade  na personagem:Rose-menina sabe enquanto Rose- adulta compreende.

Mais do que saber qual capacidade a conquistar, a trama de A Peculiar tristeza Guardada no Bolo de Limão  discute como esse amadurecer da narradora-personagem é conquistado.

Memorável. Um livro para inspirar.

 

Michelle Louise Paranhos- Critica Literária